Watch Dogs

14/04/2025

Em 2014, a Ubisoft lançou Watch Dogs, um jogo que rapidamente atraiu a atenção não apenas por suas promessas técnicas, mas por seu enredo sombrio e sua crítica explícita à sociedade digital. O protagonista Aiden Pearce não é um herói tradicional — é um vigilante cibernético atormentado, navegando pelas ruas de uma Chicago hiperconectada, onde tudo e todos são dados acessíveis, manipuláveis e vulneráveis.

A proposta do jogo é simples na superfície: use tecnologia para combater tecnologia. Mas sob essa casca se esconde uma dissertação interativa sobre privacidade, ética, luto e vigilância sistêmica. É um universo onde o livre-arbítrio é simulado e o poder pertence a quem detém os dados.


Narrativa: Luto, Culpa e a Redenção pelo Controle

A trama acompanha Aiden Pearce, um hacker habilidoso que vê sua sobrinha morrer por causa de suas ações no submundo digital. Movido por culpa, ele se torna um justiceiro digital, perseguindo aqueles que o feriram — e, aos poucos, mergulhando em uma guerra contra o sistema de vigilância da cidade: o ctOS (Central Operating System), uma rede unificada que controla tudo — do trânsito ao histórico criminal de cada cidadão.

O jogo toma a dor pessoal de Aiden e a transforma em uma metáfora para o conflito entre o indivíduo e o Estado, entre a privacidade e a segurança, entre o livre-arbítrio e a automação da vida. A busca de Aiden por justiça se funde com a denúncia de um sistema que vigia sem descanso e pune sem compaixão.


Jogabilidade: Liberdade Simulada, Controle Real

Em Watch Dogs, o jogador é um semideus urbano. Com o apertar de um botão, semeia caos ou resolve problemas. Controla semáforos, hackeia celulares, abre pontes e invade contas bancárias. Parece liberdade — mas o jogo é, ironicamente, sobre o perigo dessa liberdade quando se está acima da lei.

Cada ação do jogador é uma escolha ética: você roubaria a conta bancária de um civil comum? Invadiria a vida íntima de uma pessoa só por curiosidade? O jogo nunca te impede, mas sempre te mostra. E ao fazer isso, força o jogador a encarar sua própria moral diante de um mundo onde a informação é o verdadeiro poder.

Essa estrutura ecoa o conceito do Panóptico de Michel Foucault — uma prisão onde o prisioneiro nunca sabe se está sendo vigiado, então age como se estivesse o tempo todo. Em Watch Dogs, todos são prisioneiros — inclusive o jogador.


Estética e Atmosfera: A Distopia Cotidiana

Ao contrário de outros jogos distópicos que se passam em futuros devastados, Watch Dogs aposta na distopia silenciosa e atual. Chicago é familiar, funcional, viva. Mas também é vigiada, manipulada e sufocada por um sistema invisível.

A trilha sonora minimalista e melancólica reforça o peso emocional da narrativa. Não há grandiosidade hollywoodiana — apenas a frieza do mundo moderno. O jogo não precisa de robôs assassinos ou alienígenas para soar apocalíptico. A ameaça é o mundo como ele já é.


Filosofia e Política: O Custo da Segurança Total

O centro filosófico de Watch Dogs é o debate sobre segurança versus privacidade. O ctOS representa o sonho de todo governo: controle total em nome da ordem. Mas também expõe o pesadelo de todo cidadão: uma vida onde cada passo é rastreável, cada decisão é arquivada, cada erro pode ser julgado antes mesmo de acontecer.

Inspirado por escândalos reais como o da NSA e por figuras como Edward Snowden e Julian Assange, o jogo escancara o medo contemporâneo: estamos trocando nossa liberdade por uma promessa falsa de proteção. E, no processo, estamos perdendo a capacidade de decidir o que é certo e errado por nós mesmos.

Aiden Pearce é o reflexo sombrio do herói moderno. Ele não luta por justiça universal — ele busca redenção pessoal. E em sua cruzada, ele se torna parte do mesmo sistema que pretende derrubar.


Curiosidades: O Real Dentro da Ficção

  • Inspiração Real: O ctOS foi baseado em sistemas reais de vigilância urbana, como o Domain Awareness System de Nova York e o Safe City de Londres.

  • DedSec: A facção hacker do jogo, que mais tarde ganha protagonismo em Watch Dogs 2, é inspirada diretamente no grupo Anonymous — usando máscaras, códigos morais próprios e táticas de guerrilha digital.

  • Hacktivismo: O jogo ajudou a popularizar o termo entre gamers. Muitos jogadores relataram que passaram a estudar cibersegurança após jogá-lo — mostrando que a ficção pode inspirar resistência real.


Conclusão: Vigilância é Liberdade?

Watch Dogs não responde — ele questiona. Ele mostra que a tecnologia, por mais poderosa que seja, é reflexo do ser humano que a controla. Um martelo pode construir ou destruir. Um sistema de dados pode salvar vidas ou destruí-las.

Na figura de Aiden Pearce, o jogo nos apresenta um paradoxo: o homem que quer proteger os inocentes se torna um invasor de privacidades. O herói que combate o sistema se torna um algoritmo vivo dentro dele. E talvez essa seja a maior tragédia: quando os vigilantes se tornam tão perigosos quanto os tiranos que derrubaram.


Escrita e edição: Dart

Gosto de séries, filmes e quadrinhos

Escrita e revisão: joyce

Apaixonada por livros, música e games