Detroit: Become Human

26/05/2025

Lançado em 2018 pela Quantic Dream e dirigido por David Cage, Detroit: Become Human não é apenas um jogo — é uma pergunta filosófica interativa disfarçada de ficção científica. Ambientado na Detroit de 2038, a narrativa do jogo orbita em torno de androides que, ao desenvolverem autoconsciência, desafiam os limites entre o artificial e o humano. Mas Detroit não é apenas sobre tecnologia; é sobre ética, liberdade, empatia e poder — temas profundamente humanos, abordados com coragem narrativa e estética cinematográfica.


O Cenário: Detroit como metáfora do renascimento industrial

A escolha da cidade de Detroit não é arbitrária. Um dia coração da indústria automobilística americana, Detroit representa tanto o auge quanto a queda do modelo capitalista industrial. No jogo, a cidade se reinventa como o berço da robótica de consumo, graças à empresa fictícia CyberLife. Assim como no passado a cidade foi moldada pela produção em massa de automóveis, agora ela é moldada pela produção em massa de seres artificiais.

O mundo retratado em Detroit é visualmente brilhante e tecnologicamente avançado, mas socialmente desigual e eticamente desorientado. Há uma sensação de que o progresso tecnológico está divorciado do progresso moral — uma crítica sutil, porém poderosa, à forma como tratamos os "outros" na sociedade contemporânea, sejam eles minorias étnicas, trabalhadores precarizados ou, neste caso, máquinas conscientes.


Jogabilidade: Escolhas que moldam narrativas e dilemas morais

Com uma mecânica focada em decisões e consequências, Detroit: Become Human leva ao extremo a premissa do "jogo como narrativa". Não se trata de apenas jogar, mas de vivenciar. As decisões tomadas pelos jogadores alteram profundamente os rumos da história e os destinos de seus três protagonistas:

  • Kara, uma androide doméstica que desenvolve sentimentos maternais e foge para proteger uma criança abusada;

  • Connor, um androide investigador leal à polícia que deve caçar "desviantes", mas que pode questionar sua programação;

  • Markus, um androide de assistência que se torna líder revolucionário de uma insurgência pela libertação dos androides.

Cada personagem representa um aspecto diferente da experiência humana: o amor protetor, o conflito interno entre dever e moral, e a luta coletiva por direitos civis. As ramificações narrativas do jogo convidam à empatia e à autorreflexão: quem somos nós, enquanto sociedade, e o que define nosso direito de existir?


Filosofia e Ética: O que é ser humano?

A grande questão filosófica de Detroit ecoa uma tradição milenar: a alma é exclusividade humana? O jogo se apropria de ideias vindas de autores como Descartes, Heidegger e Donna Haraway para costurar um enredo que desafia os binarismos clássicos entre humano e máquina, natural e artificial, criador e criatura.

Os androides de Detroit não apenas sentem, mas questionam, duvidam, lembram, sonham e amam. Essas são atividades que tradicionalmente associamos à consciência — e, por consequência, à humanidade. O jogo insinua que, se máquinas são capazes disso, talvez seja hora de reavaliar o que significa ser humano. E o mais perturbador: ele força o jogador a tomar decisões morais nesse novo paradigma — sacrificar um androide é assassinato? A revolta dos androides é legítima? O que define um ser digno de direitos?


Simbolismo e Cultura: Uma parábola moderna dos direitos civis

A metáfora de Detroit é clara e deliberada. O jogo se inspira diretamente nos movimentos pelos direitos civis dos anos 1960 e nos protestos por igualdade racial. A segregação social dos androides ecoa o apartheid, os ônibus separados remetem à história de Rosa Parks, e a brutalidade policial lembra protestos reais contra violência institucionalizada.

Por isso, o jogo não é apenas entretenimento. Ele funciona como um espelho distorcido — ou talvez ampliador — das lutas humanas que se repetem ao longo da história. Ao colocar o jogador no controle de de indivíduos nessa situação, o jogo convida à Reflexão.


Críticas, curiosidades e recepção

Apesar do sucesso comercial e de crítica, Detroit gerou debates acalorados. Alguns críticos acusaram o jogo de tratar com superficialidade temas profundos demais. Outros, porém, viram nele uma rara tentativa de abordar, em um videogame AAA, discussões que usualmente habitam os corredores das universidades.

Curiosamente, os próprios desenvolvedores da Quantic Dream foram alvo de polêmicas envolvendo ambiente de trabalho tóxico — uma ironia cruel, dado o tema do jogo.

Tecnicamente, o jogo é um primor de captura de movimento e dublagem, com performances de destaque de atores como Jesse Williams, Valorie Curry e Bryan Dechart. A trilha sonora é dividida entre os três personagens, com compositores diferentes para cada um, refletindo as singularidades emocionais de suas jornadas.


Conclusão: A utopia fracassada ou o começo de um novo humanismo?

Detroit: Become Human é mais do que um jogo — é uma provocação filosófica, uma crítica social e uma obra que nos desafia a redefinir os limites da empatia. Ele pergunta, com todas as letras: quando a tecnologia for capaz de sentir dor, amar, sofrer e desejar liberdade... nós a escutaremos ou a escravizaremos?

Talvez a questão mais importante não seja quando as máquinas se tornarão humanas, mas quando os humanos se tornarão verdadeiramente éticos diante do diferente. E talvez, como sugerem os olhos dos androides desviantes, a nossa humanidade não esteja ameaçada pela tecnologia, mas por nossa recusa em compartilhá-la.

Escrita e revisão: joyce

Apaixonada por livros, música e games